domingo, 23 de outubro de 2011

O caminho cartesiano rumo à demonstração da existência do Eu, de Deus e do mundo.


Tendo em vista o descontentamento coma educação que recebera e percebendo que essa educação não era somente restrita a instituição onde estudara, mas sim, um padrão educacional condicionado por um pensamento que estava presente em toda Europa, Descartes se propôs a buscar o “conhecimento claro” não mais nos livros ou através de instruções dos Doutos, mas no livro do mundo e em si próprio:
Mas, depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio. (Descartes, 1973a; p. 41)

Desta forma, Descartes propõe um abandono das opiniões que recebera, haja visto, que percebera em suas andanças a insegurança das mesmas e uma espécie de apatia para com a vida. Determina-se então a começar do começo, abandonando os juízos, que historicamente fora contaminado por diversas opiniões. Ver-se-á que a proposta cartesiana inicia-se em refletir acerca das opiniões que recebera e mostrando quanto são inseguras, determina-se a substituí-las por outras melhores ou encontrar razões que justifiquem as mesmas após serem analisadas. Vejamos como isso se dá. A principio cabe ao filosofo definir o método sob o qual vai atingir os pilares de sua filosofia:
Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz. (Descartes, 1973a; p. 44)

O método é em Descartes a possibilidade de qualquer e todo homem atingir o conhecimento seguro, o historiador da filosofia Nicola Abbagnano vai dizer que o método cartesiano é o que possibilita a qualquer homem que faça do uso correto da sua razão, não se enveredar pelo falso:
Descartes define o método como o conjunto de “regras certas e fáceis que, por quem quer que sejam exatamente observadas, lhe tornam impossível tomar o falso pelo verdadeiro”. (Abbagnano, 1992, p. 44).

E em que consiste o método cartesiano? No Discurso do Método, Descartes nos fala acerca desse método; que segundo o filósofo era composto por quatro preceitos que deveria substituir o grande número de regras da lógica.
O primeiro preceito é o da evidência, que se define por não aceitar como verdade aquilo que não fosse claro o suficiente para estar isento da dúvida. Este preceito está atrelado à noção de imediato, ou seja, aquilo que não tem mediação é um trabalho puro da mente, que nasce unicamente da razão, por meio da intuição.
O segundo preceito é o da análise, neste o filosofo divide o problema em partes, em quantas partes for necessário para melhor resolver o problema.
O terceiro preceito é o da síntese, este refere-se a ordenação, iniciando-se sempre pelo o que é mais simples, passando gradativamente aos pensamentos mais complexos.
O quarto e último preceito é o de enumerar, neste é feita a revisão para garantir que nada fora omitido.
Descartes levou o método, que em si, consiste em duvidar de todo conhecimento até então tido como verdadeiro e os meios aos quais se chegam aos mesmos; a tudo que existe, para ver assim se existia algo sobre o qual não restasse a mínima dúvida, existindo, esse sim poderia ser tido como verdadeiro, claro e seguro.
O primeiro conhecimento que será posto ao crivo da dúvida metódica será o conhecimento sensível, sob este conhecimento René Descartes irá dizer que o mesmo, os sentidos, já nos enganaram algumas vezes e se já procedeu em nos enganar uma vez quem garante que não possa nos enganar sempre.
Ao crivo da dúvida Cartesiana recai também a crença nas coisas matérias, tais como: meu corpo, sol, cadeira, mesa, céu, vejamos como o filosofo demonstra a insegurança da crença da existência de tais entes:
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro do meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente ...o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso...lembro de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia... vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono.
(Descartes, 1973b; p. 94)

Em outras palavras Descartes vai proceder da seguinte maneira para chegar à primeira certeza: se no sono vejo objetos que vejo quando estou acordado o que pode me garantir que não vivo a sonhar? Ou que tudo isso a que denomino mundo, objetos, não passem de ilusões, assim como no sonho? O que pode distinguir a vigília do sono?
Dentro dessa exposição de insegurança e dúvida quanto à certeza das coisas matérias e dos sentidos, o filosofo lança a idéia da figura do gênio maligno, peça importante no pensamento cartesiano.
Com o gênio onipotente, no entanto embusteiro e maligno a dúvida alcança seu ápice, nela, os conhecimentos tidos como mais certos, tais como a matemática também é tido como incerto; basta levar em conta que dois e três são sempre cinco, porem com o gênio maligno quem garante que é realmente assim. “Será que este não vive a me enganar quanto a essas coisas tidas como exata também?” Não tendo segurança do conhecimento matemático, o filosofo dá como incerta todas as crenças. No entanto, na radicalidade da dúvida Cartesiana apresenta-se algo do qual o filosofo não pode duvidar, que é o fato de que para duvidar é preciso de que exista algo que a isso faça.
Pode-se não crer que existam as coisas, que tudo não passa de um sonho, que um gênio maligno vive a nos enganar, todavia, notar-se-á, que para que haja algo para ser enganado, que duvida das coisas, cuja existência ainda não fora provada, se faz necessário que exista algo, sendo assim existo pelo fato de duvidar. A própria dúvida é a condição da existência desse eu, que tem como atividade o duvidar, que independe das coisas materias, seja céu, corpo, matemática, Deus.
 Na segunda meditação, Descartes nos mostra as razões da existência dessa primeira verdade:
Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou , se ele me engana; e. por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que concebo em meu espírito. (Descartes, 1973b; p. 100)

Para auxiliar e reforçar o argumento referente a essa primeira prova utilizaremos esta citação do historiador de filosofia Émile Bréhier:

A função do cogito em Descartes é dupla: dá um tipo exemplar de uma proposição verdadeira e prepara a distinção radical de alma e corpo. O cogito é certo, porque eu percebo clara e distintamente a união entre meu pensamento e minha existência. (1977; p. 68)

Assim o filósofo chega a primeira verdade, a primeira prova, a da existência do cogito, ou seja, a de que existe uma substancia; cabe agora definir o que é está coisa cujo atividade  é o pensar.
Na segunda meditação Descartes vai definir os atributos dessa coisa ao qual denominou alma, espírito, res-cogitas, eu; o atributo coerente é o pensar, mas o que será pensar? O que será essa coisa que pensa? E o que Descartes nos diz agora?
É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (Descartes, 1977b; p. 103).

Depois do percurso, do auxilio de Bréhier, Abbagnano e, sobretudo do próprio Descartes, parece-nos claro o caminho que percorrera o filósofo para chegar a demonstração do cogito.
Definida a estrutura do cogito, da alma, como tendo atributos que fora acima citados e como sendo distinta do corpo e independente do mesmo, Descartes se propõe a verificar se ainda existe outra verdade que não a do cogito; ele começa a questionar-se acerca das idéias que se encontram em sua alma. Essas idéias que sabe que existe, já que faz parte da estrutura do que fora definido como alma, eu ou espírito; cabe, entretanto, agora, descobrir se as coisas sobre as quais tenho idéias, realmente existem; tais como cadeiras, céu, meu corpo, Deus e tantas outras. Como saíra Descartes desse solipisismo?
Para se chegar a uma posição clara de uma próxima verdade, o filosofo francês, busca, antes, classificar as idéias, evoquemos uma passagem da história da filosofia do historiador Nicola Abbagnano para nos situar:


Descartes divide em três categorias todas as idéias: as que me parecem haverem nascido em mim (inatas); as que me parecem estranhas ou vindas do exterior (adventícias); e as formadas ou encontradas por mim próprio (fictícias). À primeira classe de idéias pertence a capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas; à segunda classe pertencem as idéias das coisas naturais; à terceira, as idéias das coisas quiméricas ou inventadas. (1992; pp. 52–53).

Procedendo assim, o filosofo vai questionar a objetividade dessas idéias que representam as coisas materiais; ele define essas idéias correspondentes as coisas materiais, como sendo possíveis de serem criadas por ele mesmo, já que ele possui as imperfeições que essas idéias também têm; todavia a idéia de Deus, de um Ser imutável, perfeito, onipresente, onipotente, onisciente, como poderia ter sido fruto do seu espírito visto que não possui nenhuma dessas perfeições? Sendo que o perfeito não é fruto do imperfeito, tais idéias de perfeição, onisciência, imutabilidade não foram criadas por esse ser imperfeito que é o cogito, mas sim foram colocadas no espírito por um ser que as possui e é perfeito, ou seja, por Deus:
Portanto, resta tão-somente a idéia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo?Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa idéia possa tirar sua origem de mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois ainda que a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substancia, eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita. (Descartes, 1973b; pp. 115-116)  

 Essa é a prova pela causalidade, por onde Descartes prova a existência do Deus, que é causa, como produtor das idéias perfeitas (onisciência, onipotência, onipresença), sendo essas idéias, efeito, que reside no imperfeito que é a res cogitans.
Para dar mais fundamentação à existência do Deus Descartes busca um argumento ontológica, vejamos como Abbagnano nos mostra isso:

Mas já a escolástica havia fornecido uma prova que pretendia ir da simples idéia de Deus à existência de Deus: a prova ontológica... Como não é possível conceber um triangulo que não tenha os ângulos internos iguais a dois retos, assim não é possível conceber Deus não existente. (1992; p. 54).

Este argumento diz que um ser que é perfeito, que possui todas as qualidades, tais como, imutabilidade, onipresença, onisciência, porque, iria não ter justamente a qualidade da existência, destarte, a existência está atrelada a perfeição e Deus que é perfeito não poderia estar isento desta qualidade que é a existência.
Daí resulta a prova da existência de mais uma substancia, a saber, a res infinita, Deus.
Logo, a figura do malin génie cai por terra, a prova do Deus que é perfeito e bom, tira solapa a idéia do embusteiro.





Referências

ABBAGNANO, N. História da Filosofia Vol. VI. São Paulo: Editora Presença.
BRÉHIER, E. Historia da Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou.
DESCARTES, R. Carta. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973c.
______________. Discurso do Método. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973a.
______________. Meditações. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973b


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