Em um texto bastante acessível o Prof. João Carlos consegue mostrar a
importância da leitura dos textos dos filósofos.
O prazer do texto
João Carlos Salles
De Salvador (BA)
Anos atrás, um aluno do curso de filosofia da federal
vangloriou-se por ter conseguido se formar sem ter lido um livro inteiro
sequer. Ora, isso dificilmente seria possível nos dias de hoje. Em quase todo
país, houve uma mudança considerável na concepção dos nossos cursos e no perfil
profissional de nossos egressos.
Um índice relevante é a relação de docentes e discentes com nossas
fontes primárias, os livros clássicos de filosofia. Afinal, os manuais de
filosofia, por necessários ou excelentes que possam ser, nunca devem tornar-se
principais e menos ainda suficientes.
Aliás, em certo sentido, a própria expressão "manual de
filosofia" não deixa de comportar alguma mínima contradição em termos. Se
é próprio do filosofar o caminho tortuoso por que chegamos, muita vez, a
resultados aparentemente parcos ou nenhuns, o manual parece pretender atingir
esses mesmos resultados, mas em linha reta. A filosofia é sempre labiríntica, e
os manuais, em sua maioria, parecem preferir a paisagem dos desertos.
Na maioria dos nossos cursos, porém, os manuais têm dado lugar aos
próprios textos filosóficos. E isso, em grande parte, por nosso corpo docente
estar sendo formado em um novo estilo - e então não importa se a tradição a que
se vincula é analítica ou hermenêutica, se prefere enfrentar temas ou se
privilegia, por exemplo, uma abordagem vertical da história da filosofia.
O texto filosófico clássico (inclusive o contemporâneo) é agora
uma dimensão que nos unifica, sendo o confronto preferencial com ele, em
edições de qualidade, a oportunidade essencial de nossa formação.
Temos tido assim uma grande vitória. E, por sinal, ela é tamanha
que a atenção ao texto pode chegar a outros extremos indesejáveis. Depois de
combater tanto os que não liam sequer um livro, eventualmente temos agora até
que afastar a tentação de alunos da graduação só lerem um único grande livro,
com o que nossos jovens mais promissores se vêm levados a uma indesejável
especialização precoce. Deixaram decerto de ser um mar de meia polegada, mas
correm o risco de ficar aprisionados em um pequeno abismo.
Não pode formar adequadamente quem não estiver bem formado.
Tampouco despertará vocações filosóficas quem não se encanta com o texto, quem
não é capaz do prazer exato de entendê-lo e mesmo de revivê-lo por sua leitura.
E tal prazer é extraordinário, mas intrínseco ao trabalho filosófico, como
talvez o enuncie Wittgenstein ao apresentar seu Tractatus.
Na primeira frase do seu prefácio, queremos crer, Wittgenstein
enuncia o desafio característico e quase paradoxal não apenas da sua, mas de
toda grande obra filosófica: "Este livro talvez seja apenas por quem já
tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso - ou, pelo
menos, algo semelhante. - Não é, pois, um manual. - Teria alcançado seu fim se desse
prazer a alguém que o lesse e entendesse".
Sem que desejemos recusar algum eco de Barthes, foi essa frase de
Wittgenstein que inspirou o título do nosso Colóquio O Prazer do Texto,
colóquio promovido pelo programa de pós-graduação em filosofia da UFBA e que
chega agora à sua quarta edição.
A nosso ver, essa inspiração de Wittgenstein deve ser reiterada.
Mais ainda, ela coincide com um esforço presente em todo país por fazer
coincidir a profissionalização cada vez maior do trabalho filosófico com a
vocação necessária para a filosofia. Muitos são os esforços nesse sentido, e o
do nosso colóquio (que divulgamos logo abaixo) tem sido um entre eles.
Por meio de esforços assim prazerosos, a formação de nossos alunos
e a pesquisa de nossos professores (com independência de sua orientação) têm
conformado um padrão de qualidade elevado em todo país, contribuindo para a
consolidação e a identidade de uma comunidade filosófica nacional.
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