terça-feira, 29 de abril de 2014

Vadiagem com o pensamento: uma modalidade do ócio filosófico

Quando era criança gostava de ficar parado fitando o horizonte. Algumas linhas que interrompem uma visão horizontal são sempre um limite para a imaginação; existem algumas que consigo lembrar bem, a linha horizontal oceânica, a linha horizontal de um cerrado, a linha horizontal no cume de uma montanha. Embora tenham suas especificidades todas elas, de certo modo, nos impõe uma interrogação: O que existe além da linha do horizonte? Quando pequeno em minhas elucubrações infantis gostava de pensar mundos que poderiam existir para além do firmamento, passava horas nesta contenda entre o que pode existir e o que posso imaginar.



Foto Luis Andre 
Meu avô quando percebia que minha demora nesses pensamentos fortuitos estava além da conta interrompia dizendo: “Ora, menino! Deixe de ficar vadiando com pensamentos”. “Vadiar com pensamentos”, no dicionário, uma das definições possíveis para essa palavra esta relacionado a alguém que não tem trabalho, aquele que vive do ócio, mas quem vadia com o pensamento tem alguma coisa para se ocupar.  Aristóteles disse que o ócio dos gregos foi um dos motivos que possibilitou o surgimento da filosofia, posso dizer que ócio e “vadiagem de pensamento” nesse caso são sinônimos, vadiar, assim como o ócio é a maneira de pensar outro mundo, um mundo possível. Ainda na esteira do pensamento aristotélico podemos perceber que o ócio não é a inércia e muito menos a preguiça, pois para o filósofo a felicidade é uma atividade, uma atividade que move o homem, move não no sentido de reprodução, mas no sentido de criação, mas meu avô já estava contaminado pelas ideias do negócio (negação do ócio).  Eu cresci, a vida com suas nuances do mundo adulto me obrigou a abandonar um pouco essa vadiagem, mas sempre que me sobra um tempo eu paro diante do mar, mirando o horizonte e começo, como dizia meu avô, a vadiar com o pensamentos . Eis que em uma dessas minhas vadiagens me deparei com uma situação imagética interessante que me levou a escrever este texto. Deparei-me com uma serie de perguntas em torno de figuras importantes da história que temos poucos ou quase registros nenhum,  personagens que marcaram e continuam marcando a nossa forma de viver, de pensar. Não possuímos nada de Sócrates, feito por ele mesmo, nenhum escrito, nenhum retrato, não possuímos nenhum escrito de Jesus, nem de Buda, Noé e tantos outros, mas eles deixaram marcas sem igual, fincaram sua presença de forma indelével nos trilhos da história, para além do presente. Seguindo esse caminho de pensar nessas “celebridades” tentei recriar a face, a voz, os gestos de cada um deles, mas a confusão foi tanta que decidi parar, não dá para se encantar tanto com sua imaginação quando você tem tantos registros não tão fidedignos de pessoas que conviveram ou não conviveram, mas que escreveram sobre essas personalidades, sua imaginação de certa forma fica infectada, e não para por ai, ainda existe as confusões de opiniões distintas que te leva a entrar em uma contenda para definir se você deve aceitar por exemplo o Sócrates de Platão, ou o Sócrates de Aristófanes. Tudo seria mais fácil se o homem pudesse descobrir uma máquina de voltar no tempo, voltar no tempo, mas não interferir em nada que ocorreu no passado, ser apenas um espectador dos grandes acontecimentos e dos grandes protagonistas da história. Vamos vadiar um pouco nesta ideia e imaginar como deve ter sido a pregação de Jesus no Sermão da Montanha, Jesus falando, seus olhos, sua voz, seus gestos. Como deve ter sido a defesa de Sócrates? As aulas de Kant, os debates de Descartes, o momento do pronunciamento feito por Machado de Assis na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras em 20 de julho de 1897 ao ser empossado como presidente da Academia? São enigmas que só poderão emergir de uma mente que se propõe a vadiar, mas que entretanto, embora possa ser recriado imageticamente, não tira o caráter de enigmas, são imagens muito particulares para serem fidedignas com a realidade.
Se podemos fazer essa analogia o que temos mais próximo, mais parecido com essa máquina do tempo é a arte, a arte é o campo onde aceitamos a possibilidade do absurdo, para Merleau-Ponty a arte é o advento, uma promessa infinita de acontecimentos, com suas ferramentas que provoca o casamento de cores e sons, formas e gestos a arte recria o que não foi apreciado pelos sentidos e faz o encantamento aflorar e assim somos deslocados para eras ou momentos que nada, a não ser a arte, pode nos aproximar. Na arte, por exemplo, nos encantamos muito mais ao ver o Sócrates do filme homônimo de Roberto Rosselline, que o Sócrates da Apologia de Platão. Ainda que os fatos nos leve a crer que o personagem de Platão é o mais próximo do real. A arte é fruto de uma experiência estética, pertencente, segundo a tradição filosófica moderna, da razão humana, pois embora tenhamos gostos particulares, sentimentos distintos sobre uma obra artística, o sentimento de beleza é algo que todo homem possui, por isso a arte é comunicável e o artista pode ser compreendido, mesmo quando tenta recriar um mundo absurdo.
A arte é um veículo que se aproxima muito dessa "vadiagem com o pensamento", não é por acaso que o artista é um dos primeiros a se rebelar contra a sociedade do negócio. Uma das lutas que percebemos claramente é a que se trava entre o artista e a industria cultural, o artista, por mais ligado a produção cultural de massa em algum momento ele vai se questionar e mesmo recusar o tratamento mercadológico que é dado a sua obra. Pois no fundo ele percebe que a arte enquanto mercadoria perde seu encantamento, pois ao ser barateada para atender aos interesses de grande circulação ela se esvazia de sentido. A arte como o pensamento precisa do ócio para viver. 


O homem ainda não criou essa máquina do tempo, tão pouco sabemos se ele vai conseguir de fato criar, mas uma coisa sabemos, o presente não vai deixar esse vazio para posteridade, teremos, graças a tecnologia, áudio, vídeo para que, ao menos daqui a 100 anos possam saber como era a voz de Deleuze, Gandhi, Tereza de Calcutá, Stephen Hawking entre tantos outros ilustres. E ainda assim, mesmo assim, a arte vai incrementar a imaginação, sem a qual certamente a história desses homens e seus acontecimentos não serão tão coloridos.    

3 comentários:

Lílian disse...

Gostaria de parabenizar esse grande ser por este texto fantástico. Não consigo expressar em palavras o quão profundamente este pensamento seu à cerca da arte e da subserviência imposta pelo mercantilismo aos seus produtos. Você traçou um passeio histórico rico de personagens e passagens. Trouxe à luz, reflexões importantes e inusitadas. Gostaria de ter estado no momento em que o homem realizou diversos grandes feitos históricos. O que temos hoje é uma leitura de quem viu ou ouviu falar. Sua discussão sobre o ócio é muito relevante e um convite a "OCIAR". O ócio permite que sejamos descontínuos. Não tenho bagagem filosófica e histórica para discutir com você sobre toda a complexidade e leveza deste texto, mas, ainda assim, deixo registrado meu contentamento em ler um texto filosófico parido por uma mente rara e que se fará entender por todo mundo que chegar nesta página.

Lílian disse...

acerca*

Unknown disse...

Te Parabenizo, Professor pela bela reflexão que acabei de ler , tirei algumas dúvida também :) , eu sou um tipo de pessoa que sempre paro para pensar e analisar as coisas além do horizonte mesmo é bom :)

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