A criança é a inocência, e o esquecimento, um
novo começar, um brinquedo, uma roda que gira
sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
novo começar, um brinquedo, uma roda que gira
sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
Nietzsche
Na infância
manifestamos um sentimento que se aproxima muito da claustrofobia. Quando somos
criança temos medo dos lugares fechados, temos medo de ficar sozinhos, temos
medo do escuro e temos medo do que fica em local escuro, fechado e abaixo no
subsolo.
.jpg)
A construção
imagética que fazemos desses locais é tão forte que se transforma em dimensões
simbólicas, conscientes e inconscientes, desdobrando, na idade adulta, em um
compartimento "porânico" (me permitam o neologismo aqui) na nossa
vida, na nossa existência. Esse compartimento é uma parte de nós onde lançamos,
de forma voluntária e involuntária, as lembranças duras que vivenciamos. O
porão-caverna-poço físico da nossa infância ganha uma dimensão imaterial e
passa a habitar nossa alma, nosso coração, nossa memória. Recorremos a muitos
artefatos para isolar a figura do porão que se manifesta de tantas formas. O
entretenimento, a diversão, são fugas desenfreadas nas inúmeras tentativas de exílio
do porão.
Gilles
Deleuze e Felix Guattari, dois pensadores franceses contemporâneos, trataram
desse assunto, do contato constante do caos com a ordem, do porão com nossa
fuga para o entretenimento. Com relação a esse panorama, os pensadores foram
enfáticos em afirmar que estamos mergulhados no caos. No caos que o senso
comum, a vida cotidiana imediatista busca desenfreadamente fugir. Busca-se
diversões e opiniões para se afastar dos problemas, entretanto essas são formas
de fuga e toda fuga é momentânea, instantânea demais e pode durar pouco menos
que uma ressaca.

E isso foi o
que historicamente construímos. Desde as pinturas rupestres o homem busca pela
arte superar o caos que se materializa pela desordem social, guerras, fenômenos
naturais, envelhecer, adoecer, morrer. Ele busca construir com a ciência
métodos, cálculos para controlar a vida e com a filosofia busca criar conceitos
para organizá-la e compreende-la.

É isso que constitui
uma das principais propostas do Projeto de Aula em Campo no Território da
Chapada Diamantina, um encontro entre os docentes conhecedores das várias
disciplinas potencias humanas para entender o caos da nossa existência na
esfera natural, social, política, psíquica e buscar formas
inteligentes e lúdicas de supera-las (interdisciplinaridade). Uma das
vivências que experienciamos durante o
projeto, exemplifica bem isso que falei até aqui. Ocorre no Poço
Encantado, situado na Chapada Diamantina, especificamente, no município de
Itaeté, uma caverna singular e de rara beleza, que convida os seus visitantes
para duas travessias: Uma pela história da humanidade e a outra pela história
da nossa casa, o planeta terra.
O planeta
surgiu, se formos pela trilha da evolução, há 13 bilhões de anos, uma grande
explosão provocou, até onde se sabe, o início de tudo. Imerso em um caos as
partículas buscaram se juntar e assim, não necessariamente assim, mas depois
de muitos ciclos de caos e ordem, foi surgindo a diversidade que deu origem a
nossa galaxia, o nosso sistema solar e nosso pequeno ponto azul. A gaia, nosso
planeta, surgiu há 4,6 bilhões de anos.
Diversas
transformações foram necessárias até que diante da diversidade minerais,
vegetais e animais, surgisse as primeiras especies de seres dotados de
inteligência, eram os primeiros protótipos de seres humanos. Era a vida
inteligente desabrochando, até seu cume maior o homo sapiens sapiens, há cerca
de 50 mil anos.
A
constituição do planeta terra se deu mediante vários ciclos de mudanças
profundas, uma dessas, mais especificamente, deu origem aos continentes, deu
origem a América Latina, deu origem a Bahia, deu origem ao nosso próximo ponto
de encontro, a Chapada Diamantina.
A Chapada é
um livro de história da humanidade, todavia não é um livro de história chato, é
um livro de história mágico. Cheia de encantos, é capaz de tirar dos mais
sérios risos e dos mais pessimistas, sonhos. Ela, com sua gigante e colossal
estrutura, permeada por locais de diversas paisagens e diversidades animais e
naturais, provoca ambiguidades de sentimentos: mistério e curiosidade.
E essa
ambiguidade ocorre, justamente pois ela, por meio dos seus monumentos naturais
traz a tona a dimensão incessante da existência: a dimensão caos e ordem.
É esse
sentimento que nos toma quando descemos 300 m para chegar até o fundo da
caverna do Poço Encantado. Em meio a escuridão de rochas calcárias e uma
descida ingrime, fica latente a pergunta: "como tudo isso surgiu?",
"o que me espera lá embaixo?"
Mas tamanha
é a sensibilização quando nos deparamos com misterioso lago azul, em meio a
paredes frias e escuras de rochas multicolores. A caverna que nos assombra é a
mesma que nos encanta. Parece que o Poço Encantado simboliza um movimento
contrario daquele narrado por Platão em sua célebre Alegoria da Caverna.
Para os que
não conhecem, ou ainda não leram na íntegra, segue uma interpretação, feita
pela filosofa Marilena Chauí:
Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro. Entre
o muro e o chão da caverna há uma fresta por onde passa um fino feixe de luz
exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa. Desde o nascimento,
geração após geração, seres humanos encontram-se ali, de costas para a entrada,
acorrentados sem poder mover a cabeça nem locomover-se, forçados a olhar apenas
a parede do fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo exterior nem a luz do Sol,
sem jamais ter efetivamente visto uns aos outros nem a si mesmos, mas apenas
sombras dos outros e de si mesmos porque estão no escuro e imobilizados. Abaixo
do muro, do lado de dentro da caverna, há um fogo que ilumina vagamente o
interior sombrio e faz com que as coisas que se passam do lado de fora sejam
projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Do lado de fora,
pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras ou imagens de
homens, mulheres e animais cujas sombras também são projetadas na parede da
caverna, como num teatro de fantoches. Os prisioneiros julgam que as sombras
de coisas e pessoas, os sons de suas falas e as imagens que transportam nos
ombros são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres
vivos que se movem e falam.Os prisioneiros se comunicam, dando nome às coisas
que julgam ver (sem vê-Ias realmente, pois estão na obscuridade) e imaginam
que o que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora, são as vozes
das próprias sombras e não dos homens cujas imagens estão projetadas na
parede; também imaginam que os sons produzidos pelos artefatos que esses homens
carregam nos ombros são vozes de seres reais.Qual é, pois. a situação dessas
pessoas aprisionadas? Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coisas
e dos homens exteriores como as sombras dos artefatos fabricados por eles.
Essa confusão, porém, não tem como causa a natureza dos prisioneiros e sim as
condições adversas em que se encontram. Que aconteceria se fossem libertados
dessa condição de miséria?Um dos prisioneiros, inconformado com a condição em
que se encontra, decide abandoná-Ia. Fabrica um instrumento com o qual quebra
os grilhões. De início, move a cabeça, depois o corpo todo; a seguir, avança
na direção do muro e o escala. Enfrentando os obstáculos de um caminho íngreme
e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela
luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados. Enche-se de
dor por causa dos movimentos que seu corpo realiza pela primeira vez e pelo
ofuscamento de seus olhos sob a luz externa, muito mais forte do que o fraco
brilho do fogo que havia no interior da caverna. Sente-se dividido entre a
incredulidade e o deslumbramento. Incredulidade porque será obrigado a decidir
onde sé encontra a realidade: no que vê agora ou nas sombras em que sempre
viveu. Deslumbramento (literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não conseguem
ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu primeiro impulso é o de retornar à
caverna para livrar-se da dor e do espanto, atraído pela escuridão, que lhe
parece mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse aprendizado é
doloroso, fazendo-o desejar a caverna onde tudo lhe é familiar e
conhecido.Sentindo-se sem disposição para regressar à caverna por causa da
rudeza do caminho, o prisioneiro permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se
à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, tem a felicidade de finalmente ver as
próprias coisas, descobrindo que estivera prisioneiro a vida toda e que em sua
prisão vira apenas sombras. Doravante, desejará ficar longe da caverna para
sempre e lutará com todas as suas forças para jamais regressar a ela. No
entanto, não pode evitar lastimar a sorte dos outros prisioneiros e, por fim,
toma a difícil decisão de regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos
demais o que viu e convencê-los a se libertarem também.Que lhe acontece nesse
retorno? Os demais prisioneiros zombam dele, não acreditando em suas palavras
e, se não conseguem silenciá-lo com suas caçoadas, tentam faze-lo espancando-o.
Se mesmo assim ele teima em afirmar o que viu e os convida a sair da caverna,
certamente acabam por matá-lo. Mas, quem sabe alguns podem ouvi-lo e, contra a
vontade dos demais, também decidir sair da caverna rumo à realidade. O que é a
caverna? O mundo de aparências em que vivemos. Que são as sombras projetadas
no fundo? As coisas que percebemos. Que são os grilhões e as correntes? Nossos
preconceitos e opiniões, nossa crença de que o que estamos percebendo é a
realidade. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O
que é a luz do Sol? A luz da verdade. O quê é o mundo iluminado pelo sol da
verdade? A realidade. Qual o instrumento que liberta o prisioneiro rebelde e
com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A Filosofia.
Como disse anteriormente, nosso movimento é o oposto do que traçou
Platão, ou então, nossa caverna é o mundo, enquanto a caverna do Poço Encantado
é uma ponte para um tipo de realidade, a realidade que nossa vida cotidiana,
da imediaticidade, do instantâneo, não pode mostrar. O mistério e o
assombro que o local nos lança é um convite a se indagar e buscar respostas
sobre a existência do Planeta e sobre nossa existência.
O local que foi construído por causa do movimento incessante
das placas tectônicas, dos agentes severos de transformações naturais
internos e externos, tem uma história de medo e mortes, pois para que sua
beleza viesse a tona, foi necessário muitos anos de transformação, duras transformações.
Com isso quero dizer que no caos e na ordem de milhares de anos se formou
aquela caverna que guarda no seu âmago um poço azul, reluzente, harmonioso, que
revela para o olhar das ciências, filosofia e da arte a sua história e assim
nos chama a se embrenhar por nossa história e a percorrer nossos
porões existenciais e descobrir, enfim, que em nosso âmago escondemos
tesouros tão brilhantes, azuis e reluzentes quanto as águas do Poço
Encantado.
Para os que desejam a leitura direta da Alegoria da Caverna, cliquem
aqui
0 comentários:
Postar um comentário