segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Poço encantado: uma viagem por nossa humanidade

A criança é a inocência, e o esquecimento, um
 novo começar, um brinquedo, uma roda que gira
sobre si, um movimento, uma santa afirmação
.
Nietzsche

Na infância manifestamos um sentimento que se aproxima muito da claustrofobia. Quando somos criança temos medo dos lugares fechados, temos medo de ficar sozinhos, temos medo do escuro e temos medo do que fica em local escuro, fechado e abaixo no subsolo. 

Porão, caverna, poço e buraco são sinônimos de perigo, sinônimos de assombro. É algo que deve ser evitado se não pode ser isolado ou esquecido. Crescemos com essa opinião e passamos a vida evitando os porões, buracos... e cavernas. 

A construção imagética que fazemos desses locais é tão forte que se transforma em dimensões simbólicas, conscientes e inconscientes, desdobrando, na idade adulta, em um compartimento "porânico" (me permitam o neologismo aqui) na nossa vida, na nossa existência. Esse compartimento é uma parte de nós onde lançamos, de forma voluntária e involuntária, as lembranças duras que vivenciamos. O porão-caverna-poço físico da nossa infância ganha uma dimensão imaterial e passa a habitar nossa alma, nosso coração, nossa memória. Recorremos a muitos artefatos para isolar a figura do porão que se manifesta de tantas formas. O entretenimento, a diversão, são fugas desenfreadas nas inúmeras tentativas de exílio do porão. 


Gilles Deleuze e Felix Guattari, dois pensadores franceses contemporâneos, trataram desse assunto, do contato constante do caos com a ordem, do porão com nossa fuga para o entretenimento. Com relação a esse panorama, os pensadores foram enfáticos em afirmar que estamos mergulhados no caos. No caos que o senso comum, a vida cotidiana imediatista busca desenfreadamente fugir. Busca-se diversões e opiniões para se afastar dos problemas, entretanto essas são formas de fuga e toda fuga é momentânea, instantânea demais e pode durar pouco menos que uma ressaca. 

Eles afirmam que uma forma sábia e coerente de lidar com o inevitável porão existencial é se apossar das dimensões potencias vitais humanas, a saber: a arte, as ciências e a filosofia. Enquanto a opinião, a diversão e o divertimento nos enganam, propondo algo que eles não podem fazer: vencer o caos; as três dimensões potenciais humanas possibilitam isso, possibilitam vencer o caos, pois nos fazem perceber que não podemos sair dele necessariamente, mas podemos nos elevar "espiritualmente" para além deles. 
E isso foi o que historicamente construímos. Desde as pinturas rupestres o homem busca pela arte superar o caos que se materializa pela desordem social, guerras, fenômenos naturais, envelhecer, adoecer, morrer. Ele busca construir com a ciência métodos, cálculos para controlar a vida e com a filosofia busca criar conceitos para organizá-la e compreende-la. 

Por isso é necessário encarar os porões/cavernas, os simbólicos e os físicos, mas não necessariamente com a ingenuidade da opinião e do divertimento, mas acompanhados da magia da arte, do cálculo das várias ciências e com a precisão teórica/conceitual da filosofia. Encarar o caos e sair, como diz Deleuze e Guattari "vitorioso(a) dele". 
É isso que constitui uma das principais propostas do Projeto de Aula em Campo no Território da Chapada Diamantina, um encontro entre os docentes conhecedores das várias disciplinas potencias humanas para entender o caos da nossa existência na esfera natural, social, política, psíquica e buscar formas inteligentes e lúdicas de supera-las (interdisciplinaridade). Uma das vivências que experienciamos durante o projeto, exemplifica bem isso que falei até aqui. Ocorre no Poço Encantado, situado na Chapada Diamantina, especificamente, no município de Itaeté, uma caverna singular e de rara beleza, que convida os seus visitantes para duas travessias: Uma pela história da humanidade e a outra pela história da nossa casa, o planeta terra.
O planeta surgiu, se formos pela trilha da evolução, há 13 bilhões de anos, uma grande explosão provocou, até onde se sabe, o início de tudo. Imerso em um caos as partículas buscaram se juntar e assim, não necessariamente assim, mas depois de muitos ciclos de caos e ordem, foi surgindo a diversidade que deu origem a nossa galaxia, o nosso sistema solar e nosso pequeno ponto azul. A gaia, nosso planeta, surgiu há 4,6 bilhões de anos. 
Diversas transformações foram necessárias até que diante da diversidade minerais, vegetais e animais, surgisse as primeiras especies de seres dotados de inteligência, eram os primeiros protótipos de seres humanos. Era a vida inteligente desabrochando, até seu cume maior o homo sapiens sapiens, há cerca de 50 mil anos. 
A constituição do planeta terra se deu mediante vários ciclos de mudanças profundas, uma dessas, mais especificamente, deu origem aos continentes, deu origem a América Latina, deu origem a Bahia, deu origem ao nosso próximo ponto de encontro, a Chapada Diamantina. 
A Chapada é um livro de história da humanidade, todavia não é um livro de história chato, é um livro de história mágico. Cheia de encantos, é capaz de tirar dos mais sérios risos e dos mais pessimistas, sonhos. Ela, com sua gigante e colossal estrutura, permeada por locais de diversas paisagens e diversidades animais e naturais, provoca ambiguidades de sentimentos: mistério e curiosidade. 
E essa ambiguidade ocorre, justamente pois ela, por meio dos seus monumentos naturais traz a tona a dimensão incessante da existência: a dimensão caos e ordem. 
É esse sentimento que nos toma quando descemos 300 m para chegar até o fundo da caverna do Poço Encantado. Em meio a escuridão de rochas calcárias e uma descida ingrime, fica latente a pergunta: "como tudo isso surgiu?", "o que me espera lá embaixo?" 
Mas tamanha é a sensibilização quando nos deparamos com misterioso lago azul, em meio a paredes frias e escuras de rochas multicolores. A caverna que nos assombra é a mesma que nos encanta. Parece que o Poço Encantado simboliza um movimento contrario daquele narrado por Platão em sua célebre Alegoria da Caverna. 
Para os que não conhecem, ou ainda não leram na íntegra, segue uma interpretação, feita pela filosofa Marilena Chauí:  
Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro. Entre o muro e o chão da caverna há uma fresta por onde passa um fino feixe de luz exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa. Desde o nascimento, geração após geração, seres humanos encontram-se ali, de costas para a entrada, acorrentados sem poder mover a cabeça nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo exterior nem a luz do Sol, sem jamais ter efetivamente visto uns aos outros nem a si mesmos, mas apenas sombras dos outros e de si mesmos porque estão no escuro e imobilizados. Abaixo do muro, do lado de dentro da caverna, há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz com que as coisas que se passam do lado de fora sejam pro­jetadas como sombras nas paredes do fundo da caver­na. Do lado de fora, pessoas passam conversando e car­regando nos ombros figuras ou imagens de homens, mulheres e animais cujas sombras também são projeta­das na parede da caverna, como num teatro de fanto­ches. Os prisioneiros julgam que as sombras de coisas e pessoas, os sons de suas falas e as imagens que trans­portam nos ombros são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam.Os prisioneiros se comunicam, dando nome às coisas que julgam ver (sem vê-Ias realmente, pois estão na obs­curidade) e imaginam que o que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora, são as vozes das pró­prias sombras e não dos homens cujas imagens estão projetadas na parede; também imaginam que os sons produzidos pelos artefatos que esses homens carregam nos ombros são vozes de seres reais.Qual é, pois. a situação dessas pessoas aprisionadas? Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coi­sas e dos homens exteriores como as sombras dos artefa­tos fabricados por eles. Essa confusão, porém, não tem co­mo causa a natureza dos prisioneiros e sim as condições adversas em que se encontram. Que aconteceria se fossem libertados dessa condição de miséria?Um dos prisioneiros, inconformado com a condição em que se encontra, decide abandoná-Ia. Fabrica um instru­mento com o qual quebra os grilhões. De início, move a ca­beça, depois o corpo todo; a seguir, avança na direção do muro e o escala. Enfrentando os obstáculos de um cami­nho íngreme e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados. Enche-se de dor por causa dos movimentos que seu corpo realiza pela primei­ra vez e pelo ofuscamento de seus olhos sob a luz externa, muito mais forte do que o fraco brilho do fogo que havia no interior da caverna. Sente-se dividido entre a incredulidade e o deslumbramento. Incredulidade porque será obri­gado a decidir onde sé encontra a realidade: no que vê ago­ra ou nas sombras em que sempre viveu. Deslumbramento (literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não con­seguem ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu primei­ro impulso é o de retornar à caverna para livrar-se da dor e do espanto, atraído pela escuridão, que lhe parece mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse aprendizado é doloroso, fazendo-o desejar a caverna on­de tudo lhe é familiar e conhecido.Sentindo-se sem disposição para regressar à caverna por causa da rudeza do caminho, o prisioneiro permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, tem a felicidade de finalmente ver as próprias coisas, descobrindo que estivera prisioneiro a vi­da toda e que em sua prisão vira apenas sombras. Dora­vante, desejará ficar longe da caverna para sempre e luta­rá com todas as suas forças para jamais regressar a ela. No entanto, não pode evitar lastimar a sorte dos outros prisioneiros e, por fim, toma a difícil decisão de regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos demais o que viu e con­vencê-los a se libertarem também.Que lhe acontece nesse retorno? Os demais prisioneiros zombam dele, não acreditando em suas palavras e, se não conseguem silenciá-lo com suas caçoadas, tentam faze-lo espancando-o. Se mesmo assim ele teima em afirmar o que viu e os convida a sair da caverna, certamente aca­bam por matá-lo. Mas, quem sabe alguns podem ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidir sair da caverna rumo à realidade. O que é a caverna? O mundo de aparências em que vi­vemos. Que são as sombras projetadas no fundo? As coi­sas que percebemos. Que são os grilhões e as correntes? Nossos preconceitos e opiniões, nossa crença de que o que estamos percebendo é a realidade. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz do Sol? A luz da verdade. O quê é o mundo iluminado pelo sol da verdade? A realidade. Qual o instrumento que liberta o prisioneiro rebelde e com o qual ele deseja libertar os ou­tros prisioneiros? A Filosofia.
Como disse anteriormente, nosso movimento é o oposto do que traçou Platão, ou então, nossa caverna é o mundo, enquanto a caverna do Poço Encantado é uma ponte para um tipo de realidade, a realidade que nossa vida cotidiana, da imediaticidade, do instantâneo, não pode mostrar. O mistério e o assombro que o local nos lança é um convite a se indagar e buscar respostas sobre a existência do Planeta e sobre nossa existência. 
O local que foi construído por causa do movimento incessante das placas tectônicas, dos agentes severos de transformações naturais internos e externos, tem uma história de medo e mortes, pois para que sua beleza viesse a tona, foi necessário muitos anos de transformação, duras transformações. Com isso quero dizer que no caos e na ordem de milhares de anos se formou aquela caverna que guarda no seu âmago um poço azul, reluzente, harmonioso, que revela para o olhar das ciências, filosofia e da arte a sua história e assim nos chama a se embrenhar por nossa história e a percorrer nossos porões existenciais e descobrir, enfim, que em nosso âmago escondemos tesouros tão brilhantes, azuis e reluzentes quanto as águas do Poço Encantado. 


Para os que desejam a leitura direta da Alegoria da Caverna, cliquem aqui


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