quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Breaking Bad, Platão e a moralidade


Walter é um professor de química de uma escola secundária nos Estados Unidos, além de lecionar ele também trabalha em uma loja de conveniência, como uma forma de angariar mais recursos para ajudar nas despesas em casa, onde ele vive com a esposa, que está grávida, e um filho que teve paralisia cerebral. Walter tem então 50 anos, leva uma vida pacata como um intelectual fracassado, suas aulas de química são tidas como chatas, no posto onde trabalha ele sofre com o excesso de autoridade do seu patrão e quase nunca pode responder exatamente por sua vida. Parece que Walter aposentou seus sonhos, seus projetos e selou os olhos para tentar não vê-los.  
Ao completar 50 anos ele descobre que está com um câncer, um cancro pulmonar fulminante. Os médicos não sabem ao certo, mas as perspectivas de vida de agora em diante são mínimas, a morte bate na porta do seu quarto e a qualquer momento poderá entrar. Aparentemente ele não se importa com a morte, com o fato do fim da vida, parece que não vivera até então uma vida bem vivida, mas ele se importa com aqueles que irá deixar, se importa com seu filho, com sua esposa e sua filha que está para nascer, se importa com a hipoteca da casa. O futuro é incerto para morrer agora. Evitar a morte provavelmente é impossível; pensando bem e analisando dentro de algumas estatísticas ele pode viver  um pouco mais, ou mesmo quem sabe pode até ficar curado, existem casos milagrosos que fogem das perspectivas da medicina, mas todavia isso é incerto, muito incerto para deixar aquietar sua mente e coração. Se tiver que morrer agora, deixando algum sentido para a vida, é aquele de que deixou sua família, mas deixou eles bem. Mas, como fazer isso, uma vez que deixar sua família bem, pressupõe conseguir bastante recurso financeiro, suficiente para quitar a casa, pagar a faculdade do filho e as despesas da esposa e da criança?
Com a vida de professor e no posto de gasolina, mesmo que consiga viver mais uma década, não será possível, o que ganha é o suficiente para manter as despesas da casa e só isso. Com isso Walter White precisa descobrir uma forma de ganhar dinheiro rápido, ele precisa ser mais rápido que o câncer. Nessa corrida que conduz para morte ele precisa encontrar um atalho que leve ao dinheiro, muito dinheiro.
Essa situação: O cenário da série Breaking Bad, se passa no Novo México, estado norte americano que faz fronteira com o México, esse território foi adquirido em uma guerra que os Estados Unidos travou com o México alguns anos depois de sua independência. Além dessa peculiaridade existe um laço forte e beligerante entre este território e o México: o tráfico, o cartel. Esse é o ponto de entrada das drogas que vem da América e penetra nos Estados Unidos. Boa parte da droga que até então é fabricada dentro ou fora do território americano, ou é produzida no México, ou é produzida nos Estados Unidos e por mexicanos.
Por algumas razões, que deixo aos cuidados daqueles que se interessarem e quiserem assistir ao filme - o que indico [1] - Walter descobre que essa é uma empreitada rendosa e que pode usar seus conhecimentos de química para produzir a droga, por pouco tempo, mas o tempo suficiente para guardar todo dinheiro necessário que assegure uma boa vida a sua família. E é assim que inicia a sua odisseia  pelo tortuoso mundo do tráfico de drogas, sua produção e distribuição, algo que conduzirá nosso personagem ao posto de maior e melhor produtor de pedras.
Antes de adentrarmos no trama filosófico dessa história quero fazer um deslocamento. Vamos sair dos Estados Unidos do Sec. XXI, palco da trama do seriado Breaking Bad, voltando bastante no tempo e mesmo saindo do recurso cinematográfico e adentrando, agora, o mundo grego, mais especificamente no mundo grego a partir da realidade descrita no livro II da grande obra a República de Platão, escrita no sec. IV a.C, para conhecer a história de Giges e seu anel mágico.

Quem conta a história é o personagem Glauco, quando tenta a todo custo convencer o personagem Sócrates de que a moral nada mais é do que um discurso dos fracos, dos covardes, daqueles que por medo de serem punidos não ousam fazer aquilo que julgam amoral (mal) quando isso for te beneficiar. Sei que o texto está escrito em uma linguagem um tanto inabitual, mas vou reproduzir ele aqui, já como mecanismo de direcioná-los ao texto na integra, o que certamente poderá proporcionar uma leitura prazerosa: 

Este homem era pastor a serviço do rei (aqui ele já está falando sobre Giges) que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada.

Assim, Glauco narra como Giges encontrou o anel mágico, até aqui ele não descreveu o poder do anel, mas vamos acompanhar a história e me permita te fazer uma solicitação, se possível é claro, tente se colocar o máximo que puder no lugar de Giges, só enquanto faz a leitura.

Com esse anel no dedo, foi assistir à assembléia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível.
Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citaria isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto.

Giges encontrou algo que o tiraria da condição de ser considerado criminoso e sobretudo de ser castigado. Tudo, exatamente tudo seria possível fazer, sem que no entanto descobrissem que foi ele o autor; de quantas benesses se aproveitar, quanto de bem a si e a outros tantos queridos ele iria fazer. Adeus a punição, vida longa a Giges. Um crime perfeito!
Alguns poderiam perguntar: - "mas e a consciência de Giges? Eu, em seu lugar ficaria com um peso na consciência." E talvez, Giges responderia: - "Peso? Por qual razão? Vivo bem, bem melhor que antes quando era pastor e vivia na miséria". No caso de Giges é bem diferente de Raskolnikov do romance Crime e Castigo de Dostoievski, não existe possibilidade de suspeita, investigação, descobertas, ele é o crime, mas o castigo se tornou invisível.

Giges é um dos personagens que se imortalizou na  história da filosofia, inúmeras obras pensam a questão da moral, da ação humana e suas justificativas a partir de Giges e seu anel mágico. Talvez, alguns, ainda neste ponto possam pensar que a história é boba, ou que é uma grande fantasia imaginar um anel que não existe, afinal, anel mágico é um conto-da-carochinha.

Mas, vejam que o anel mágico é uma estratégia epistemológica, um corrimão para nos levar a seguinte pergunta: Por que somos morais? Qual a razão da nossa moralidade? Na boa, seja franco, porque ser uma boa pessoa?  Se você pode não ser (tendo um anel como esse por exemplo), não existe a necessidade. Outra questão que se coloca e vai mais além: porque fazer o bem se nada vai ganhar e nem perder com isso? E porque não fazer algo que não vai te prejudicar e vai te ajudar tanto, mas que é tido como imoral, ou mesmo ilegal? Claro, talvez não faça igual a Giges, não mate, não faça tantas atrocidades, mas poderia usar o anel para fazer tanto bem, ajudar a tantas pessoas que estão precisando e que sem a ajuda que esse anel poderá trazer sofreria tanto. O que faria se tivesse esse anel? E o que não faria?

Alguns, com o anel, pensaria como Mister Walter White. Mister White se parece com Giges, ele se tornou invisível, não por causa de um anel, mas porque ele é um alguém onde dificilmente iria recair suspeitas - um velho, doente, um professor moralista, pai de família, cidadão e ainda por cima o marido da irmã da sua esposa e também seu amigo é um agente do DEA que investiga o tráfico de droga, alguém que confia piamente nele - Ele é um Giges, porém sem anel e com mais "motivos" para não fazer o "que se deve" do que Giges, afinal ele está com uma doença terminal e teme pelo futuro dos seus filhos e em todo caso ele deve pensar de maneira imediata: "bom é por pouco tempo, além do mais eles "os usuários" já usam mesmo, eu vou fabricar drogas para quem já compra, fabricarei para os maiores de idade, farei um pouco de mal por um bem maior, o da minha família, das pessoas que amo" e isso tudo passou na cabeça de White e parece que isso ameniza aquilo que chamamos de "peso da consciência".

Uma questão que está em jogo aqui é o cerne das discussões no campo da ética, o fundamento das nossas boas ações, da nossa moralidade, que pode ser feita da seguinte forma. Viver moralmente é do nosso interesse? Recusar algumas atitudes, que nos beneficiaria, mas que é imoral é interessante? Mas porque? Mesmo que possa sair ileso, não ser punido é interessante agir moralmente quando nosso ato imoral vai nos beneficiar? Parece fácil, talvez você pense que é fácil mesmo diante das duas histórias exemplo. Então traga mais, aproxime essas questões para o seu cotidiano, o cotidiano das suas ações. Imagine quando existe brechas em leis, regras, códigos de confiança mínimos, como você age. Pense no cinto de segurança, nas filas em vários lugares, na fidelidade, em todas as "mentirinhas". Não estou acusando ninguém, é uma cutucada, uma provocação para pensar na nossa famigerada moral, no fundamento e fonte de nossas obrigações. Existem várias fontes, nós agimos guiado por esses fundamentos morais. Não duvido e já escutei muitas pessoas falarem que não são "ruins" e "imorais" por causa de Deus, por medo do inferno, do castigo, entre outras questões. Lógico que essas fontes não são só religiosas e mesmo as religiosas nem sempre se colocam assim, recorrendo ao inferno, mas existem aqueles que preferem a benevolência, outros o contrato social, o dever, são mais algumas propostas, inclusive bem trabalhadas por vários pensadores para justificar a moralidade. Em outro momento iremos analisar algumas, mas fica a deixa, faça essas perguntas, leve até a radicalidade usando o exemplo de Giges e Mister Walter White, vai conduzi-los, ao menos, para identificar em que se funda sua moralidade. 

Não desvelarei o final da séria e também não entrarei nas estratagemas empreendidas por Platão [2] para justificar o que ganhamos agindo moralmente (o que é incrivelmente interessante e merece uma longa reflexão), minha intenção, aqui, foi tão somente provocar algumas breves reflexões acerca de temas pertinentes sobre a moral, suas justificativas e de como isso está atrelado irrevogavelmente com nossa vida. Parecem temas distantes, mas que certamente mais cedo ou mais tarde seremos levados a pensar de maneira tautológica sobre eles. Giges e Mister Walter White são uma espécie de espelho, nos mostram nossos vícios, nossa "natureza". Na verdade diria que de um modo ou de outro no dia a dia nos deparamos com esses julgamentos morais e essas barganhas que fazemos com nossa consciência e ai os exemplos são inúmeros, cabe a cada um encontrar e refletir sobre aqueles que mais afeta. E por fim fica o convite para que pensemos mais sobre essas questões morais tão presentes na filosofia e humanidades como um todo, não tanto como maneira de nortear nossas decisões, mas, sobretudo, para embasa-las. Pois quantos Walters e Giges existem a nossa volta e dentro de nos?

Veja também:



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1 - Indicado para maiores de 16 anos. 
2 - Sugiro a leitura, continuidade desse texto, a primeira proposta de ação moral no texto Édipo Rei: Uma moralidade cósmica.


PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.

9 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Igor disse...

Muito bom Keu! Estava outro dia refletindo sobre a questão da ética e sobre a sua "relatividade". São inúmeras as situações onde a ética parece ser "relativa". Quantas vezes não imaginamos casos onde tal conduta seria justificada? É o caso de Mr. White que a série trás. Porém, acho que a ética é algo muito puro e difícil de ser aplicada. A ética/moral só o é realmente quando é aplicada em todos os casos, sem exceção. O grande problema é que a para nós é difícil aceitar isso como o correto. Bom, não sabia dessa história de Sócrates sobre o anel, muito interessante. Ver-se que Tolkien se inspirou nisso mesmo para escrever sobre a Terra Média. Enfim, eu acho que o que ganhamos seguindo a moral é o que traz significado à própria sociedade, isto é, a moral é o lubrificador social. Digo isso pois acho impossível vivermos em sociedade sem uma moral regrando tudo e à todos. Acho que se todos os indivíduos pensassem em um prisma anarquista (um egoismo social) a moral se aplicaria de forma praticamente invisível, polindo as relações, gerando um benefício mútuo. Além disso, ainda pensei na questão espiritual e nas leis karmicas para justificar a necessidade de uma moral e etc. Tá bom, ta ótimo. Parabéns meu velho, muito bom o texto. Abração!

Unknown disse...

Fantástico. Não vi uma analogia de Breaking Bad tão coerente como essa, de temas aparentemente distantes, mas que se interligam quando o assunto é moral.
Eu tive tantas conversas sobre o assunto com o autor deste artigo que, quando leio agora, fico feliz em aprender mais sobre o tema.
Ficou excelente!

Jailma Santos disse...

Ótima análise! Confesso que não conheço Giges e Mister Walter White, porém, achei o paralelo perfeito e a discussão suscitada bastante pertinente. São questionamentos que nos fazemos diariamente simplesmente observando o "caminhar" da sociedade.

Diego Guimarães Camargo disse...

Keu, meu amigo, que excelente texto. Olha, essa era uma reflexão que eu não havia feito ainda, em relação à série. Acredito que Walter abriu mão de sua "consciência tranquila" em prol de algo que, para ele - como bem demonstrado por você - era mais importante do que isso: o (pseudo) bem estar de sua família. A realidade de White não é diferente de muitas da nossas e/ou daquelas que nos cercam. Afinal, o homem moral assim age por quê? Se ele tivesse um "talento" como o de Walter, faria o mesmo? Um abração, meu querido.

Unknown disse...

Texto brilhante!!!!

Unknown disse...

Ecelente texo Muitas vezes fazemos coisas que em nossa visão não estará nos prejudicando, mas pelo contrário junto com nossas escolhas vem consequências. No vídeo " Vai valer a pena"; mostra uma realidade que muitos não fariam, muito não abriram mão de salvar a vida de seu filho para salvar as pessoas. Como citado no texto Giges pode ser invisível, mas isso não mudou suas ações. É possível perceber que assim como Mister White muitas vezes fazemos algo ruim, para ajudar alguém amamos, no entanto não percebemos que aquilo não é bom. Fazemos as coisas pensando muito no que será bom para nós, e esquecemos de pensar no próximo.

Unknown disse...

Texto maravilhoso

Unknown disse...

Ótimo texto! Produz uma bela reflexão 👏

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